segunda-feira, 22 de março de 2021

Cheiros

Um vidro vazio que ao ser aberto traz de volta memórias. Perfume é passagem expressa para mil mundos. Cheiros me capturam.

Uma inspiração profunda e estou na infância, sentindo seus cheiros, de todos o mais marcante, o da chuva.
A cena começava com o cheiro do vento, seco, áspero, velho, era uma mistura de poeira e folhas, eu parava o que estivesse fazendo, fechava os olhos e esperava imóvel, enquanto ouvia ao longe a voz da mamãe "vem pra dentro que está vindo chuva"... era mais um aviso do que uma ordem, pois, ela sabia que eu não arredaria o pé dali até que a chuva derramasse toda e me molhasse até a alma.
Depois do vento vinham os primeiros pingos, grossos, chegavam a fazer cócegas na pele, eles traziam o cheiro da terra, do asfalto e das plantas começando a receber a rega dos céus, esse aroma começava suave e ia se intensificando conforme a umidade tomava conta de tudo. Era fresco e molhado, entrava macio no meu nariz. Nessa hora, eu me enchia de coragem e começava a correr de olhos fechados e braços abertos, com o rosto virado para o alto e então sentia o perfume dos pingos, era o cheiro do céu.
No último ato desse espetáculo a chuva cessava e vinha o cheiro da despedida, era frio, penetrante e triste, como todo adeus. Fim.

Esse texto foi escrito por mim em 8 de março como a Missão 2 do desafio de escrita proposto por @waau.ideias e @palavra.asa #aCasadasPalavras + #PalavraAsa

Mudança

Morar na mudança é não ter chão e ao mesmo tempo ter todos os chãos do mundo. É leveza porque é desapego, de ideias, de coisas, de sentimentos, de verdades. É peso porque é abandono, saudade, medo. É ter a incerteza como convidada frequente para os seus dias.


Sempre fugi das mudanças, pelo menos as profundas, enquanto isso me sentia traída pelas mudanças mundanas.
Uma loja fechava e eu já tinha a certeza que nunca mais encontraria o que só era vendido ali. Uma pessoa se aposentava e a constatação de que não a encontraria mais naquele café, fazia com que o lugar perdesse o encanto. Uma simples receita era alterada e já não sentia mais o mesmo sabor ao degustar a saudosa iguaria.

Com o tempo fui me dando conta que tamanho apego me aprisionava, pois, havia uma parte de mim que namorava a mudança, a parte de fora de mim tocava o novo, buscava incessantemente o novo, enquanto a parte de dentro de mim se ressentia da infidelidade da minha superfície.

Não sei bem como a mudança chegou, não foi revoada barulhenta de maritacas ao amanhecer, foi canto triste de sabiá chamando a amada à noitinha.

O novo foi entrando pelas frestas de mim, me convidando para um olhar torto, um passo errante, um movimento inesperado.
Aos poucos eu me deixei re-novar e a mudança que vivia fora veio morar dentro e eu que vivia dentro fui morar na mudança de fora.

Texto elaborado por mim em 02/03/2021 para a Missão n°1 do projeto #aCasadasPalavras + #PalavraAsa por @waau.ideias e @palavra.asa.